Até que a água me cubra o nariz

Há livros que se folheiam, sim. E há este — que não. Este não se deixa folhear como quem passa o tempo. Este prende-te. Este abre-se como se abrisse um corpo vivo, ainda quente, e te deixasse entrar. Sem anúncios. Sem preparação. Uma frase, depois outra, e já estás dentro. Dentro de ti, sobretudo. Porque este livro não espera que o leias. Ele é que te lê a ti. Com a precisão de quem conhece cada canto escuro onde escondeste a dor. Com a ternura dos que sabem que o silêncio também sangra. Não há aqui personagens. Há ecos de ti em vozes que nunca ouviste, mas que te conhecem. Há quartos por abrir. Cheiros que voltam — o do sabão no pescoço de um avô calado, o perfume abandonado nos lençóis de quem não voltou, a humidade entranhada de uma infância onde se cresceu depressa demais. Cada página é um corredor sem saída. Em algumas entras de olhos fechados. Noutras, com medo. Mas todas te pertencem. Este livro não quer entreter-te. Quer despir-te. Quer que te vejas sem os filtros da sobrevivência, sem os remendos que puseste por cima das perdas. Aqui não há história. Há matéria. Matéria feita de amor que não chegou, de culpas herdadas, de saudades que se disfarçam de força. Lê devagar. Lê com os olhos, sim, mas também com a pele, com os dentes cerrados, com as memórias que nunca quiseste ter. Este livro não quer ser bonito. Quer ser real. Real como a dor que te moldou. Real como a ternura que ainda te resiste. E talvez, se tiveres a coragem de ir até ao fim, encontres ali, sem aviso, algo que julgavas morto — o que restou de ti, inteiro, digno, humano — antes que a água, enfim, te cubra o nariz.